É meio-dia. Estou almoçando com Anna após o trabalho, fiz tudo metodicamente porque não parei de pensar no que acontecera durante a madrugada. Nem Anna, pelo que pude perceber. Ela está me perguntando sobre o que estou escrevendo, vou mostrar à ela. Já está na hora de ela saber. Isso me entristece... saber que ela vai embora. Me entristece profundamente...
15:35
Estamos na casa da avó de Anna.
Primeiro: ela não fugiu como achei que faria, na verdade se interessou ainda mais e achou muito "fofo" e "apaixonante" o que escrevi sobre ela. Droga, não é comum eu me sentir envergonhado como me senti quando ela falou aquelas palavras. Não pretendia deixá-la ler o que escrevi, contudo não consegui recuperar o caderno quando ela o arrancou de minha mão e saiu correndo, rindo de minha cara.
Segundo: a avó dela reconheceu o idioma da caixa, mas não sabe o que está escrito. Parece ser uma tal de "linguagem enoquiana", e acredite ou não, falada por anjos - e demônios, anjos caídos. Se ela tivesse me dito isso há uma semana, eu diria que era papo furado. Mas depois do que eu vi ontem... Acredito fielmente. Teremos de procurar alguém que possa traduzir o que está escrito na caixa, e não sabemos por onde começar. Vamos dormir na casa de Anna esta noite. Não é o que eu queria fazer, não quero estar com ela durante a noite caso aquilo volte, mas ou mesmo tempo é importante que fiquemos juntos. Talvez ela possa me proteger caso algo aconteça (eu sei, sou um cagão, o problema é que força física não adianta nada quando se trata de assombrações, e sim conhecimento, que Anna tem bastante). Tem uma coisa que me intriga: a avó de Anna disse que o toque do demônio seria quente, quase fervente, mas o que me agarrou era gelado e meio molhado. Parecia um pedaço de carne retirada de um balde de água fria...
Fui tomar banho, comecei a sentir uma dor de cabeça terrível, sentei no chão do box e fechei os olhos. Quando os reabri, estava olhando para baixo, amarrando os cadarços de uma bota - a mesma que havia visto em frente à porta do dormitório. Via tudo como se fosse um filme antigo, preto e branco. Quando olhei para frente, vi uma mulher parada à porta, usando um vestido preto até o chão e chorando. Ela me olhava como se estivesse desesperada e caminhei até ela, mas apenas desviei e passei pela porta, saí por um campo nebuloso e adentrei uma floresta de pinheiros escura. Saí da floresta, caminhei por alguns metros e parei na beirada de um penhasco. Observei a correnteza forte do rio lá em baixo - era um vale muito profundo. Virei-me, a mulher ainda chorando estava atrás de mim. Ela caminhou lentamente e parou ao meu lado, observou também o rio enquanto eu a observava. Ela abriu os braços. Se jogou. Tentei segurá-la, agarrei seu braço, porém o soltei quando olhei para baixo - eu estava caindo. Durante a queda, a mulher olhou para mim, estava triste e assustada - parecia aterrorizada, como se não quisesse que eu caísse também. A queda foi extremamente lenta, vi a mulher cair no rio, e fechei os olhos quando me choquei com a água também.
Quando os reabri, estava no chão do box do banheiro, caído de forma estranha. Anna estava na porta e em seu rosto havia uma expressão extremamente assustada. Ela disse alguma coisa, mas não consegui ouvir, minha cabeça ainda doía muito e havia um zunido em meu ouvido - água, do rio? Talvez. Não, do chuveiro. Ela correu e abriu a porta do box, desligou o chuveiro e levantou minha cabeça, pegando-a com as duas mãos. Olhei por cima de Anna. A mulher... a vi novamente, a mulher que chorara, que se jogara em meu sonho. Ela estava parada à porta do banheiro e ainda chorando. Não me assustei, me sentia anestesiado, como se ainda estivesse em um sonho. Anna seguiu meu olhar e se virou, aparentemente não notou a presença da mulher, encarou-me novamente e disse mais algumas coisas, mas não ouvi nada daquilo. Continuei a encarar a mulher, percebi então que seu vestido estava muito molhado e rasgado em algumas partes, olhei em seus olhos, eles não estavam mais tristes. Estavam totalmente brancos, sua pele começou a apodrecer e seus cabelos começaram a cair. Ela começou a caminhar em minha direção, e aí me assustei. Recuperei os sentidos, tentei me levantar e pisquei os olhos, então a mulher não estava mais lá. Não havia mais ninguém a não ser Anna. "O que aconteceu?" "Eu não sei... tive um sonho... Nossa, que dor de cabeça..." "Meu Deus, consegue se levantar?" "Acho que sim..." Me levantei com ajuda de Anna, ela me enrolou um uma toalha e me ajudou a chegar até a cama. Eu estava tremendo de frio, sentei-me na cama e enquanto me secava com ajuda de Anna, contei-lhe sobre o sonho - "Faz sentido..." "Como assim?" Perguntei à ela. "Bem, duas pessoas morreram, o cara da botas você já havia visto, e a mulher também, estava no sótão..." "Espere, não vi a mulher no sótão. A coisa que vi lá definitivamente não foi a mulher, foi algo ruim, algo que queria me ferir... A mulher parece que sente culpa, como se quisesse se desculpar de alguma coisa..." "Certo... Precisamos descobrir quem são essas pessoas, ou melhor, quem foram" foi o que ela disse. Apenas concordei, não acredito que conseguiremos descobrir qualquer coisa. As roupas da mulher não eram comuns, eram antigas, assim como a casa onde estávamos e também como as minhas botas botas do homem. De qualquer modo, Anna está agora no computador à minha frente, fazendo pesquisas a fim de descobrir quem foram as pessoas que morreram, enquanto eu estou aqui deitado com as pernas sobre as pernas dela, e encostado nos travesseiros de sua cama - que é ainda melhor que a minha. Ela me viu pelado. Eu nem tinha parado para pensar nisso antes, apenas agora que descrevi a cena novamente que reparei nisso... O que será que ela pensou? Tá, eu sei que não tenho um corpo pequeno, quero dizer, fraco. Sou até que meio sarado comparado aos caras com quem eu costumava conviver, e meu... Não vou dizer que é grande, mas pequeno não é. Caramba, ela nem deve ter reparado nisso, quer dizer, olha a situação em que estávamos, se ela estivesse em meu lugar, eu não repararia nela. Mentira, eu repararia sim.
Ela achou alguma coisa; um cara e sua esposa se suicidaram em um inverno dos anos 20, o local exato da queda não fora identificado, e a cidade é meio longe - cerca de duzentos quilômetros. Então, parece que vamos viajar daqui uns dias... É melhor dormirmos agora, se é que será possível, já que a imagem da mulher apodrecendo não sai da minha cabeça...
Como pude me esquecer disso? Coloquei a mão no bolso de minha calça e senti um papel - o papel que encontrei no sótão! Não pude acreditar quando vi o que era; pensei não ser nada de mais, mas era uma foto antiga, uma foto da mulher do meu sonho/alucinação. Estava parada e suas vestes eram totalmente pretas, em seu rosto havia uma espécie de véu preto que escondia seus olhos, e ela estava em meio a homens, todos com expressões sérias. A foto parecia registrar o momento de um ritual; havia alguma coisa ao lado da mulher, parecia uma criança se escondendo por trás da saia de seu vestido. O cenário parecia uma igreja, porém não de adoração à Deus. Acho que cultuavam outra coisa...
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