23/05

Hoje de manhã acordei pensando sobre esse diário. Não quero mais que minha mãe leia, desculpe mãe. Vou escrever na primeira página: "Mãe, entregue esse caderno à polícia caso eu tenha morrido, e não leia nada além dessa frase." Eu sei que você está lendo isso aqui mãe. Eu sei que você está sorrindo agora. Eu sei que você está gargalhando agora, mãe. Sei também que você daqui a pouco lágrimas estarão escorrendo de seus olhos. Desculpe, mãe.

Anna e eu saímos logo depois de comermos uns salgadinhos que sobraram do mercado, passamos no posto meio abandonado na saída da cidade para usarmos o banheiro, que estava mais sujo do que eu imaginei. Anna não conseguiu tomar banho lá, ainda mais porque a água estava tão gelada que, depois do banho, me senti castrado. Aí Anna lembrou que a senhora da biblioteca havia mencionado um hotel em uma rua perto da praça, hotel que não tínhamos encontrado na noite anterior. Passamos pela rua novamente e avistei uma pequena entrada entre duas lojas de vestidos empoeirados. A entrada parecia um pequeno hall de alguma coisa que poderia ser um hotel, porém não havia nenhuma placa. Decidimos entrar e perguntar, e para a sorte da Anna (ela já tinha falado umas dez vezes que não aguentaria mais um dia sem tomar banho, o que é uma coisa tão sem sentido e banal pra mim, quer dizer, quem nunca ficou uns cinco dias sem tomar banho? Não que eu fique, é claro...) era um hotel mesmo, e um senhor de uns sessenta anos com cara de maracujá de gaveta nos levou até um quarto empoeirado no andar superior, não sem antes nos fazer um inquérito digno de polícia àqueles que seriam os primeiros, possivelmente, a alugar um quarto em anos. Eu não estava de bom humor.
"Como se chamam?" "David e Anna", respondi. "Preciso de pelo menos um documento de cada um." Tudo bem, entregamos os documentos. "De onde vocês vêem?" "Nova York." "Hum... a placa do carro de vocês não diz Nova York." "É porque nós roubamos esse carro." Anna arregalou os olhos para mim e gaguejou para o velho que eu estava brincando. "E o que vocês querem fazer aqui?" "Somos agentes de uma empresa multibilionária japonesa que encontrou indícios de uma possível mina de urânio 238 sob esta cidade e estamos aqui para investigar." "O quê? Minha de quê?" "David!" "Desculpe Anna, esqueci que era segredo. Urânio 238, você sabe..." Disse ao velho. "Isso aí é tipo pedra preciosa?" Ele perguntou, parecendo meio fascinado. Agora até me sinto meio culpado, o velho não tinha culpa de não saber sobre essas coisas afinal, "Sim sim, muito preciosa, vale mais que diamante, se o senhor prometer guardar o mais absoluto segredo sobre nós e o que estamos fazendo aqui, tenho certeza de que nossa empresa considerará recompensá-lo." Finalizei com uma piscadela. O velho gaguejou um pouco até que conseguiu dizer que nem que o demônio o interrogasse, ele diria qualquer coisa sobre nós. Pensando bem, a promessa faz bastante sentido. Deixei Anna responder ao resto das perguntas enquanto avaliava o quarto e alinhava os conhecimentos que já sabia sobre o "caso" do espírito. Não consegui concluir muita coisa, nem tinha mais certeza se o espírito queria mesmo minha ajuda após o incidente da cruz na sala do Mike. "Ele vai querer um pouco da coisa preciosa..." comentou Anna ao entrar no quarto. Eu dei uma risada forçada. Se o cara segurasse a coisa preciosa, ele é se tornaria mais um demônio, isso sim.

Enquanto Anna toma banho, escrevo sentado em um sofá empoeirado do hall de entrada, escolhi o mais afastado do velho no balcão. Preciso ligar pra Amanda, prometi a ela que ligaria assim que conseguisse. Isso me lembra que preciso falar com a Anna. Que merda, quando lembro que preciso falar com ela eu adio, e aí esqueço, e aí não falo. Um cara raquítico de dois metros de altura usando um terno duas vezes maior que ele com ombreiras colossais acabou de entrar no hall e foi direto falar com o velho da recepção. Entrou com pressa e nem notou minha presença, estou profundamente agradecido. Ele deve ter uns sessenta anos e não tem feições nada agradáveis, mesmo assim, com essa roupa que parece ter sido furtada do caixão do avô, ele é engraçado. Meio ridículo. Está tendo uma conversa séria com o velho, enquanto me concentro para não rir e me manter meio imobilizado. Nessas horas eu queria ter o poder de me afundar nas sombrar e me tornar parte da parede para não ser notado e conseguir escutar o que eles estão conversando, não sei porquê, mas sinto que tem a ver comigo e com Anna. Pensando bem, tem situações onde esse poder seria muito mais útil... eu sou realmente muito sensato.

10 minutos depois:

O cara começou a falar mais alto quando o velho da recepção respondeu o que quer se seja que não o agradou, aí eu consegui entender a conversa. "Você precisa entender que esse dia nós vamos ter que usar o salão e eu não dou a mínima se já tem alguma coisa marcada ou não!" "Mas sr. Hulterf, o dia já está reservado pelas mulheres há dois meses! Como é que eu vou falar para elas que só porque o prefeito quis essa data eu..." "SÓ porque o prefeito quis? Esse vai ser o dia do maior ritual de todos, a finalização, a conclusão, depois de todos esses anos finalmente nós conseguiremos! Nós PRECISAMOS de um espaço maior e eu quero que seja o salão do hotel! É melhor que você reserve a data para nós Julian, ou vai ser pior para você." "Sr. Prefeito... eu quero muito dar a data para o senhor, mas imagine como minha reputação vai ficar com as mulheres..." disse o velho meio suplicante "Julian, eu estou falando sério. Esse dia é nosso e fim de discussão." O velho soltou o ar, derrotado. "Vou ver o que posso fazer."

Anna saiu do quarto vestindo roupas executivas, quando viu minha cara disse que era para o velho acreditar na história da empresa japonesa. Gostaria de saber como ela arranjou essas roupas, afinal de contas não tinha como ela saber que eu inventaria aquela história e trouxesse as roupas de casa. Talvez ela seja muito prevenida em relação a certas coisas como roupas, eu deveria aprender alguma coisa com ela. Nós saímos em uma missão de investigação e eu nem pensei em disfarces. Que mancada. Provavelmente ela só fique tropeçando nos saltos o tempo todo porque na verdade os saltos são revólveres, e um telefone.

Anna me perguntou se eu alguma vez me sentisse um idiota. Respondi que só quando eu respiro. Isso me levou à reflexão, e cheguei à conclusão de que também me sinto um idiota quando minha ironia atinge um nível tão boss que as pessoas a quem quero atingir não entendem minha ironia, e eu fico parecendo só um abobado mesmo. Ela também me perguntou se eu possuo um alter ego (Anna está profunda hoje). Eu tenho um alter ego? Não, prefiro pensar que sou completamente único e maravilhoso assim sem alter egos. Mas o velho Bukowski não seria uma má opção. Tony Stark também não, aliás, é bem provável que eu é que seja o alter ego do Tony Stark. Merda, estou ficando sem cigarros...

Estamos voltando até a casa dos pesadelos. Anna colocou "Enter Sandman" pra tocar, dizendo que não há nada como os velhos clássicos. Não esperava que Anna quisesse me agradar dessa forma, não deve ter sido fácil.
              Primeiro ela deduziu que eu gosto de hard rock pelo meu "estilo", aí ela foi pesquisar o que é hard rock. Deve ter dado uma boa estudada na história, nos maiores nomes da música e nas músicas mais marcantes. Então se deu ao trabalho (e aos ouvidos) de escutar algumas músicas e baixá-las, para então colocar pra tocar como se ela fosse uma grande fã do estilo e tentar me fazer pensar que temos muito mesmo em comum.
Pena que ela não lembra de duas coisas: a primeira é que eu sei que ela não é fã de nenhum tipo de rock, aliás, ela não é fã de praticamente nada relativo à musica, e a segunda é o nome da banda que toca "Enter Sandman". Não fosse só isso, eu também não sou lá um grande fã de rock. Pra falar a verdade, eu gosto do Yanni com seu estilo próprio.
"Não parece muito seu estilo..." comentei depois que Anna começou a batucar no volante.
"E desde quando você é do tipo que espera que as pessoas sejam aquilo que lhes é pré-estabelecido segundo estilo ou o que quer que seja?" ela retrucou.
 "E desde quando você tenta aparentar ser o que não é só pra agradar os outros?"                
"Não estou tentando aparentar nada!"
"Então me diz de quem é esse 'velho clássico'." Eu disse desafiando-a.
"Eu... eu... já que está tão na cara assim que eu só quero TE agradar, talvez você pudesse agir menos como um idiota orgulhoso e mais como um cavalheiro." ela disse, e essa foi nossa primeira discussão.
"Desculpe Anna, mas não sou um cavalheiro. Sou mesmo um idiota orgulhoso."
          A questão agora é que preciso decidir se quero continuar sendo um idiota orgulhoso ou se quero ser um cavalheiro. Talvez eu não deva ser nenhum dos dois. Talvez eu deva ser simplesmente mais humano, e mais eu, e Eu com "E" maiúsculo não sou um idiota.
        "Você está certa Anna, me desculpe... eu deveria ser mais gentil." foi o que eu disse após um tempo de reflexão. Pedir desculpas faz com que eu me sinta bem, provavelmente porque isso faz com que a pessoa ofendida também se sinta melhor. O ser humano tem uma natureza caridosa admirável.
   "Você é mais gentil do que pensa, ainda vai descobrir isso."

Chegamos. Não sei que horas são, mas meu relógio interno é bem eficiente e estou com fome, ou seja, sei exatamente que horas são: hora de comer. Infelizmente isso vai ter que esperar.

Mais tarde:

            A casa em si já é bem assustadora, agora imagina adicionar uns espíritos, sangue e objetos medonhos: preciso começar a agradecer por cada dia que ainda permaneço vivo.
            Eu entrei na frente seguido por Anna, que aparentava estar mais assustada do que na noite anterior. Ela havia trocado de roupa no banheiro do posto durante o caminho, e agora usava um cardigã branco e uma saia rosa que a deixavam com uma aparência de garota de anime. Perceber isso fez meu coração acelerar, eu tenho uma quedinha pelas garotas de animes.
            Mas depois de colocar os pés pra dentro meu coração acelerou por outro motivo: medo. A sala/cozinha estava toda empoeirada, mas fora isso tudo estava lá, como na visão, e mais. Havia uma porta que eu não havia notado, e ao redor dela havia vários símbolos que eu não conhecia, mas Anna já os havia visto. Ela fotografou a porta toda para que a avó examinasse e então entramos.
            Demos de cara com uma escada que levava para baixo, para a total escuridão. Eu podia sentir desde o dia em que chegamos à cidade que a força ruim se intensificara, e praticamente não senti mais a presença “boa”, se é que havia uma. Ali naquela escada, a energia ruim ficou ainda mais forte e eu a sentia em meu corpo todo, em cada pelo eriçado do meu braço, até no ar que entrava e saía de meus pulmões.
            Minha cabeça começou a latejar, e comecei a me sentir fraco. Eu sentia que algo queria me impedir, contudo eu não cederia ao espírito assim tão fácil. Eu é que estou vivo e não essa coisa, o tempo dele já passou, eu é que tenho a força!!! E o He-Man também. Então chacoalhei a cabeça, peguei uma lanterna da mochila que tínhamos trazido e comecei a descer.
            Anna comentou algo sobre sentir algo ruim a respeito daquilo. Pedi a ela que ficasse, aquilo era algo que eu precisava fazer ela não precisava se envolver daquela forma e correr o risco de se machucar ou algo pior. Eu queria que ela ficasse na cozinha, ou melhor, dentro do carro, mas ela continuou descendo as escadas atrás de mim, com os olhos margeados de lágrimas devido ao medo, o que fazia com que eles ficassem ainda maiores.
            Ao primeiro olhar o porão parecia uma dispensa quase vazia, com algumas estantes nas paredes. Porém, com um olhar mais aprumado era possível distinguir através da poeira um enorme desenho de um grande círculo vermelho no chão, e vários outros símbolos como pentagramas e olhos e círculos dentro de círculos desenhados ao redor e dentro do círculo maior.
            Havia um cheiro de ferrugem no ar, e percebi ao me agachar para observá-lo melhor que o desenho era feito de sangue. Enquanto Anna fotografava tudo com uma discrição exagerada –como se estivesse em um daqueles museus onde não se pode tirar fotos mas quisesse desafiar o sistema e a sociedade como uma idealista solitária – eu analisava as estantes.
            Descobri alguns documentos, não queria passar muito tempo lá dentro então guardei na mochila o que achei interessante para que pudesse ler depois. Quando achamos que havíamos terminado, uma taça de ferro que estava em uma das estantes da parede oposta caiu no chão, gerando um som agudo que durou um bom tempo. Eu e Anna congelamos onde estávamos, minha dor de cabeça ameaçando abrir uma rachadura em meu crânio.
            “Acho melhor sairmos.” Anna disse depois de alguns segundos que pareceram horas.
            “Vamos subir, já terminamos por aqui.” Eu disse, com um tremor inesperado na voz.
            Anna começou a subir as escadas em um ritmo normal, mas terminou correndo e pulando os degraus de dois em dois. Eu, não queria ficar lá sozinho, subi pulando os degraus de três em três. Assim que eu passei pela porta, ela fechou-se estrondosamente, causando-me um breve ataque cardíaco.
            “A gente já tinha saído mesmo...” Comentei assim que recuperei a capacidade de falar. “E bater a porta na cara dos outros é falta de educação, seu... espírito mal criado.” Alguma coisa de dentro do porão foi atirada contra a porta. Saí correndo da cozinha contraindo as nádegas involuntariamente.
            Havia um corredor ao lado da sala/cozinha que levava a uma pequena sala onde havia uma escada ligando o andar de baixo com o superior. Lá encontramos quatro quartos, dois de casal com algumas fotos da mulher e do homem da minha visão, em um outro quarto havia livros, guarda roupas e outras coisas de casa, e o último quarto era de uma criança, uma menina.
            Havia muitas bonecas medonhas de porcelana com cara de “me possua”, com aqueles olhos de vidro praticamente idênticos a olhos reais. As crianças brincavam com isso há cinquenta anos? Eu não sei o que eu faria se acordasse no meio da noite e desse de cara com uma legião de caras brancas de bonecas com olhos de vidro reais arregalados me encarando, como se observassem cada etapa do meu sono. Urgh.
            Não eram só as bonecas, tudo ali era medonho. Havia uma cama toda de ferro que exalava o mesmo cheiro do porão, umas estantes com brinquedos esquisitos e apenas uma foto, a mais medonha da casa. Nela havia a mulher, o homem e uma menina todos com roupas escuras, parados no meio de um campo e a casa medonha de plano de fundo. O assustador da foto era a expressão da menina, uma expressão séria e fria, intensificada pelo olhar negro passivo. Com toda a certeza do mundo, aquela menina não era “normal”.
            Guardei a foto na mochila também e após verificar o resto da casa tendo a certeza de que nada ficou para trás, voltamos à cidade. Sair da casa foi o maior alívio para minha dor de cabeça, mas não durou muito.
            Deixamos o carro estacionado em uma rua sem saída, atrás de um furgão escuro de entregas e em baixo de uma árvore baixa que cobria tudo até as rodas com suas folhas caídas, então voltamos caminhando ao hotel. No caminho, várias pessoas passaram por nós e não deixaram de esconder seu espanto, admiração e desprezo, essencialmente por mim. Anna decidiu me disfarçar, e isso inclui uma troca completa do visual, o que não me agradou muito mas concordo que é algo necessário.
            Descobrimos um restaurante perto da praça (tudo aqui fica perto da praça), porém ele só abriria para o almoço e ainda era metade da manhã. Tive que me contentar com uma cara emburrada e uma barriga roncando. Fomos a uma loja de roupas para comprar meu disfarce que no final não ficou tão ruim assim.
            “Bom dia” disse Anna à vendedora. A mulher alta de longos cabelos louros nos cumprimentou lentamente, à medida que avaliava seus clientes. “A senhora vende roupas masculinas? Sabe, meu irmão acabou de visitar a cidade grande e acabou voltando com essas roupas horríveis porque perdeu as suas lá em uma lavanderia, ele não sabia como funcionava uma na cidade grande, que bobo não! Hahaha...”
            “Vocês são daqui?” Perguntou a mulher franzindo o cenho.
            “Sim, não daqui da cidade mas somos daqui de perto, de um sítio não muito longe...” Mentiu Anna, meio mal mas eficientemente.
            “Que pena ter perdido suas roupas meu jovem, ainda bem que tenho roupas masculinas sim!” A mulher foi para trás de muitas estantes amarrotadas de caixas e roupas avulsas e voltou com um conjunto horrível de roupas azul marinho cheirando a mofo. Assim que enfiaram aquela camisa em mim tive um ataque alérgico e passei o resto da manhã espirrando.
            “Acho que é muito pequeno, vou pegar outro.” Disse a vendedora.
            “Muito obriga...a...aatchim!”
            “Talvez algo mais... novo...” disse Anna à mulher.
            Ela voltou com uma camisa branca simples e uma calça bege relativamente vestíveis, sem cheiro de mofo e limpas. Tirei minha camiseta preta, minha fiel companheira, e deixei de lado para vestir a camisa branca.
            “Você trabalha no sítio mesmo?” perguntou a mulher a mim.        
            “Sim, trabalho sim...”
            “Deve ser um trabalho pesado, faz tempo que não vejo alguém com um corpo desses por aqui...” Me achou um gostoso não é, querida? Eu sei.
            “Sei... obrigado...” eu disse disfarçando o sorriso enquanto entrava no provador para colocar as calças.
            “Não há muitos jovens por aqui, você sabe, e os poucos que vejo não trabalham muito o físico, se dedicam mais ao intelecto.” Ela comentou por trás das cortinas.
            “Você ficaria surpresa com meu intelecto, é mais trabalhado que meu físico.”
            “Oh, é mesmo? Não vejo como um qualquer trabalhador rural possa ser intelectual.”
            “Veja, fui agraciado com uma inteligência naturalmente superior à maioria. É por isso que sei que trabalhar no sítio é um dos melhores ambientes para desenvolver a mente e buscar um equilíbrio com o corpo. Também sobra tempo para fazer dinheiro, algo muito simples para mim. Ainda bem que meu QI não é baixo como o da maioria, se fosse eu provavelmente seria um... vendedor em uma loja de roupas.” :D
            Consegui escutar o zumbido de uma mosca do outro lado das cortinas. Foi assim até eu sair do provador, e me olhar no espelho. Aquela pessoa parecia comigo, mas não era eu. Não me lembrava da última vez que vesti roupas claras como aquelas, até meus olhos sofriam com a claridade.
            “Uau David!” exclamou Anna chegando mais perto para admirar a pessoa ali parada. “Você parece até uma pessoa normal! Só falta cortar esse cabelo e...”
            “Sim, devo admitir que está bem vestido. Mas essa roupa não é barata.” Disse a mulher me olhando do alto de seu nariz empinado, que na verdade batia no meu queixo.
            “Já disse, senhora, dinheiro não é o problema.”
            “Pois bem então.” Ela disse se dirigindo ao caixa, e fui atrás para pagar. Pensei que ela cobraria o preço de uma mansão naquela cidade pelas roupas, porém a conta foi bem barata. Ela devia estar delirando quando disse que aquilo não era barato.
            “Você tinha que ver a cara que ela fez quando você disse aquele negócio sobre ser vendedor de uma loja de roupas. Achei que os olhos fossem saltar pra fora das órbitas” Anna comentou rindo depois de sairmos da loja e nos dirigirmos ao barbeiro.
            “Eu quase acreditei que ela fosse gente boa até ouvir aqueles comentários. Você sabe que não perdoo gente mesquinha. Ainda bem que ela não pediu para eu provar minha inteligência...”
            “Tenho certeza que você pensaria em algo...” disse Anna, anda rindo.
            Quando chegamos ao barbeiro, Anna decidiu que esperaria do lado de fora para fazer uma investigação solo enquanto eu me livraria das madeixas. Por mim tudo bem, Anna sabe o que faz, melhor do que eu.
            “O senhor está atrasado.” Disse um jovem um pouco acima do peso vestindo um avental verde escuro, parado ao lado de uma cadeira de barbeiro.
            “Eu acho que o senhor está enganado... quer dizer, eu não marquei um horário...” eu disse, hesitante enquanto observava o rapaz estranho. Ele possuía um bigode que ia de orelha a orelha, e calçava sapatos vermelhos enfeitados com muito brilho, além de uma camisa sem mangas dourada. Também tinha os cabelos até a altura das orelhas meticulosamente arrumados com muito gel que os grudava à cabeça formando uma espécie de capacete.
            “Eu sei, quero dizer que seu cabelo deveria ter sido cortado há um bom tempo. Veja só essas pontas secas! Quanta falta de cuidado... Há quanto tempo que esse cabelo não é lavado? Olha só isso, vou ter trabalho pelo resto da manhã, com sorte conseguirei deixa-lo apresentável.”
            “É, então... desculpe...” Eu não sabia o que dizer.
            Algumas horas depois, praticamente na hora do almoço, saí de lá com um dedo de comprimento de cabelo. Me sentia como se tivesse acabado de sair do exército, com o cabelo mais militar possível. Estou tão diferente que Anna não me reconheceu à primeira vista, apenas depois de eu acenar e perguntar o que ela achou do cabelo.
            “Você tem orelhas...” ela disse num tom maravilhado, fingido é claro. Ficou me observando por um certo tempo, então emendou: "David, você é muito bonito."
                        “Muito engraçada. Vamos comer.”
            Mal eu havia dito aquilo, um carro muito velho virou a esquina fazendo alguns malabarismos na pista. Primeiro pensei que o motorista estivesse bêbado, até ver quem estava dirigindo. Era o velho surdo que havia batido em nosso carro no dia anterior, pelo visto ele tinha mais de um carro e se recuperara do acidente bem rápido.
            Notei, com o canto do olho, dois garotos de no máximo dez anos caminhando na calçada ao lado da rua. Eles vinham na mesma direção do carro, por isso não viram quando o velho se aproximava, que também não via para onde estava indo porque se concentrava em alguma coisa dentro do carro que o mantinha de cabeça baixa.
            Eu pude prever o que aconteceria. Corri com toda a velocidade em direção aos meninos, o que atraiu a atenção das demais pessoas na rua, enquanto carro do velho subia na calçada. Ele percebeu que algo devia estar errado, mas não fora rápido o suficiente para desviar do lugar onde o menino mais louro que caminhava mais perto da pista estava.
            Por sorte, eu o havia tirado daquele lugar segundos antes, e o velho só passou por cima de uns cadernos que caíram das mãos do menino enquanto ele voava para o lado. Meu coração estava a ponto de saltar pela boca.
            “Esse velho NÃO DEVIA ter autorização para dirigir, nem um metro sequer!” foi a única coisa que consegui dizer depois enquanto o menino com os olhos arregalados tentava entender o que havia acontecido, e eu tentava engolir o coração. Seu amigo de cabelos mais escuros estava paralisado em um berro desde o momento em que o carro passara ao seu lado.
            “JASON! JASON!” Gritou um homem elegante que veio correndo de algum lugar ali próximo. Agarrou o menino enquanto avaliava a situação do mesmo, e verificava se estava tudo bem, então o abraçou e abraçou também o outro menino que agora parara de berrar, porém continuava paralisado. Então se dirigiu a mim:
            “Muito obrigado, o senhor salvou meu filho, estou profundamente agradecido.” Disse ele, e eu tive a sensação de já ter visto seu perfil em algum lugar. “Possuo uma dívida com o senhor, se há alguma coisa que o senhor queira de mim, não hesitarei em dar, dinheiro, o que o senhor...”
            “Não, está tudo bem, não quero nada, fico feliz que o menino esteja bem, me sinto lisonjeado por poder salvar a vida de alguém... só saber que ajudei alguém já é o maior pagamento que poderia querer...” foi o que consegui dizer no momento.
            O homem assentiu. “O velho Junkes não pode mais andar por aí assim, essa foi a última volta dele.” Comentou o homem, enquanto observava o carro que o velho dirigia que estava agora estacionado sobre o lixeiro da calçada. Junkes ainda não havia saído do carro, provavelmente ainda estava se recuperando do susto também.
            “Realmente, ele é um perigo...” comentei.
            “Sou Werner Kolohm, dono do mercado ali à frente e sócio da mineradora.” Disse o homem estendendo a mão para mim. Incrível o que uma mudança de visual pode fazer, duvido que o homem estenderia a mão para mim daquela maneira há algumas horas atrás.
            “Frederick... Frederick Ownson.” Foi aí que reconheci o homem, fora ele que espiava a mim e a Anna enquanto estávamos no mercado. “O senhor possui um belo mercado...”
            “Obrigado, é da família há anos. Uh... o senhor parece bem jovem, acho que não o vi ainda aqui na cidade, é novo por aqui?” Ele perguntou de certa forma até meio gentil. Reparei que várias pessoas haviam se aglomerado ao nosso redor, curiosas.
            “Sim, estou só de passagem, coisas do trabalho... trabalho para o governo, vim fazer uma avaliação de algumas terras aqui perto e acabei decidindo me hospedar por aqui, a cidade parece... simpática...” menti.
            “Isso é interessante... Frederick, essa noite haverá um jantar em minha casa, na verdade é uma pequena festa para amigos, talvez o senhor queira participar.” Convite inesperado.
            “Ah, eu não sei não...”
            “Por favor, é minha maneira de agradecer pelo que fez hoje, e será um prazer ter um convidado como o senhor em minha casa.” Disse ele calmamente com um leve sorriso. Pensando bem, seria uma boa maneira de descobrir mais a respeito da família que morava na cada assombrada.
            “Bom... tudo bem, eu apareço por lá então...” ele me entregou um cartão com um endereço e agradeceu novamente. “Eu é que agradeço pelo convite, e vocês garotos, se cuidem.” Eu disse aos meninos. Eles foram então até o carro do velho Junkes, e eu comecei a procurar Anna na multidão. Ela apareceu após algum tempo, disse que havia se escondido porque também havia reconhecido o homem e temeu que ele a reconhecesse, mesmo que, então notei, ela também estivesse usando um vestido como as mulheres aqui costumam usar.
            Contei a ela sobre a festa, e decidimos procurar por roupas adequadas para vestir à noite. Ambos concordaram em procurar por outra loja. Meu estômago já estava suplicante por comida, e decidimos parar no restaurante para almoçar, e foi tão bom... Dedicamos a tarde para investigar o que encontramos na casa assombrada, e descobrimos que o nome da mulher da casa é Dramarie e seu marido se chama Leubert. Não encontrei nada a respeito da menina, o que é um pouco frustrante. Vou tentar alinhar o que sei sobre esse caso para que faça algum sentido lógico.
  1.      Tem espíritos me assombrando.
  2.      Um desses espíritos é uma mulher que se chama Dramarie.
  3.      O outro espírito é seu marido, Leubert.
  4.      Ambos morreram quando caíram de um penhasco.
  5.      Dramarie se jogou, Leubert caiu acidentalmente.
  6.      Na casa deles há indícios de adoração a algum demônio (a avó de Anna respondeu o e-mail que havíamos mandado com as fotos, disse que tudo indica que a casa era o local utilizado por uma seita para a adoração a um demônio chamado Belphegor.)
  7.     Se as pessoas que vimos na noite anterior fazem parte da mesma seita, muita gente dessa cidade está envolvida com o que estamos investigando.
  8.     É provável que Dramarie e Leubert tinham uma filha.
  9.     Meu nome agora é Frederick por agora.

            “David, escuta só: ‘Belphegor ou Belfegor ("o senhor do fogo"), divindade moabita venerada no monte Fegor. Demônio da preguiça, das descobertas, do apodrecimento, dos inventos e do ciclo. Era cultuado na antiga Palestina na forma de uma figura alta e barbuda com a boca aberta, tendo por língua um gigantesco falo. O sabá dos feiticeiros da Idade Média não foram senão uma repetição, herança das festas de Belfegor. Belphegor é um dos sete princípes que governam o Inferno, sendo a personificação do primeiro pecado, a preguiça. Sua aparência modifica-se de acordo com a citação, desde um ser bestial (semelhante a um lobo) até um velho alto, barbudo, possuindo uma língua com forma de falo, dentes caninos grandes e uma cauda de dragão.’ Acho que é o nosso cara.” Disse Anna com o celular nas mãos.
            “Wikipedia?”
            “Arrã.”
            “Não parece muito animador...”
            “Não mesmo... ‘Quando Lúcifer inicia sua rebelião contra o Criador, todos as hordas de anjos aliados ao Senhor pegam em armas para enfrentar as forças rebeldes, porém um dos anjos mais poderosos do paraíso se recusa à participar daquela batalha, seu nome era Bastiel. Bastiel, abandona o sétimo céu e segue as "terras posteriores" onde o combate ainda não tinha atingido. Porém quando a guerra acaba, e as forças celestiais encontram Bastiel, ele é considerado desertor e enviado ao Inferno. Após ser enviado ao Inferno, Bastiel é hostilizados pelas hostes infernais, porém Lúcifer, o Imperador do Inferno, acaba por firmar uma aliança com Bastiel, nomeando Belphegor. Molloch, príncipe que reinava sobre o primeiro círculo do inferno (Desidia Circum Primus) se recusa a aceitar a presença de Belphegor e resolve eliminá-lo. Porém Belphegor, era um Arcanjo, e seus super poderes relativamente superiores aos de Molloch, um simplório querubim. Após humilhado, Molloch é expulso de Desidia Circum, e Belphegor condecorado o Príncipe da Preguiça e Rei do Primeiro Círculo. Belphegor na hierarquia do inferno, esta abaixo apenas de Lúcifer.’ Bom, podia ser pior... podia ser o próprio Lúcifer...” disse Anna com um sorriso forçado.
            “Você acha que esse demônio é algum desses espíritos que está me assombrando?”
            “Acho que não... não, definitivamente não. Um demônio assim não iria assombrar uma pessoa dessa forma, acho que essa seita apenas venera o cara.” Disse Anna despreocupadamente, largando o celular sobre a cama enquanto procurava pela carteira. “Vou encontrar roupas para usarmos essa noite, depois eu volto aqui.         
            “Acho melhor eu ir com você, não sei até que ponto é seguro...”
         “Ah, por favor, relaxa...” disse ela já no corredor com a carteira em mãos, fechando a porta atrás de si.
            Relaxa... como se fosse fácil assim.


22/05

Aparentemente, essa cidadezinha esconde algo a mais além dos cofres lotados de dinheiro nos porões das casas e dos vibradores embaixo das camas das aparentemente perfeitas donas de casa. Não pergunte como sei sobre esse último fato.
Eu e Anna passamos a noite dentro do carro porque nenhum de nós queria realmente entrar naquela casa durante a noite. Tudo de ruim poderia acontecer, você sabe, como já mencionei que minha vida anda igual a um filme de terror. Não houve mais nenhuma aparição da maldita assombração, obrigado. Ao contrário, vimos algo que poderia assustar alguns ainda mais.
É claro que não passaríamos a noite dentro do carro naquela casa do terror, então voltamos lentamente à cidade, e encostamos numa rua sem saída mal iluminada, atrás de uma camionete dos anos 80 - parecia seguro e tínhamos privacidade. Além do mais, havia algumas árvores no fim da rua, perfeito lugar para um banheiro improvisado, pelo menos para mim (Anna não gostou muito da ideia, mulheres afinal...).
Me sentia culpado. Anna tentava conversar comigo, me abraçar, me beijar, queria a mim. Não consegui, quer dizer, é claro que poderia, mas não quis. Dá pra acreditar? Amanda não saída da minha cabeça. Queria saber como ela estava, como tinha passado o dia, queria ouvir sua voz, abraçá-la, sentir seu cheiro, segurá-la em meus braços, beijá-la, protegê-la. Mal dei ouvidos ao que Anna dizia, o que é picaresco já que Anna é deveras interessante e bela. Além do mais, precisávamos conversar sobre tudo o que vimos, refletir. E sei que sinto algo por ela. Tenho que sentir, não tenho? Já não sei mais...
Eu já tinha deitado o banco e dado as costas para ela, quando luzes à frente me chamaram a atenção. Sentei-me no banco, alerta, e baixei com todo o cuidado o vidro do meu lado. Anna não demorou para ver também, decidimos sair do carro em silêncio pelo lado dela e ficamos agachados atrás da camionete para ter uma visão melhor.
As luzes eram na verdade tochas, vindas nas mãos de centenas de pessoas. Parecia quase impossível que ainda houvesse uma pessoa naquela cidade que não estava naquela passeata. Reparei que os homens usavam roupas pretas, a maioria um paletó impecável e para não fugir à regra, antigos. Certamente as costureiras ali não compravam uma revista nova desde 1800. Quanto às mulheres, usavam vestidos até o pescoço, alguns pretos, outros cinzas. Cobriam os rostos  com véus negros, e usavam luvas. Se a imagem de tudo aquilo já não era medonha o bastante, você precisava ouvir o que murmuravam. Era o mantra mais sinistro que já ouvi na vida. Quando criança, chegava a me arrepiar do medo que sentia daqueles sons assustadores gerados por todas aquelas vozes abatidas, robóticas, sem vida e intensificados pela arquitetura medieval dos enormes salões das igrejas. Agora imagine que aquilo era ainda pior. Meus olhos lacrimejavam à medida que aquele mantra penetrava na pele e chegava até os ossos. E estava tão frio... Aquilo me deixou em um transe de agonia, depressão, só acordei com o crepitar dos dentes da Anna, incapaz de controlá-los devido ao frio. Pedi para que voltasse ao carro, então cheguei mais perto, tentando não pensar nos sons. Eles passavam sem desviar os olhos do vazio à sua frente, hipnotizados. Seguiram pela rua que cortava aquela em que estávamos, e se foram. Talvez eu devesse ter ido atrás, mas minha intuição me manteve onde estava. 
 - David... aquilo foi...
 - Não sei o que foi, perecia algum tipo de adoração, ritual, não sei... - respondi ao voltar ao carro, realmente agradecido pelo silêncio e calor.
 - Acho que são pagãos... - comentou Anna, pensativa.
 - Pagãos?
 - Você sabe... não cristãos.
 - Hm... não sei. - respondi, confuso.
 - Eles acreditam que a divindade está na natureza, e que podem alcançar seus deuses através de seus fenômenos, como o sexo. Bom, eu acho que é isso, para falar a verdade nunca estudei os pagãos, é só algo que li em algum lugar... - comentou, recostando-se no banco, deixando transparecer o cansaço.
 - Bem, amanhã tentaremos descobrir mais sobre isso... Tem alguma ideia de que horas são?
 - Hm... acho que um pouco passado das duas... - comentou, com os olhos já fechados e no segundo seguinte, já estava dormindo.
Gostaria de pensar um pouco mais sobre aquilo enquanto Anna dormia, eu não poderia dormir, teria de ficar vigiando já que aquele carro não nos dava qualquer segurança. Me recostei no banco, e no momento estou aqui, escrevendo. Estou tão cansado... o teto escuro parece o céu negro da noite, consigo imaginar as estrelas...


21/05

Saí do hospital. Me sinto sufocado por tudo que está acontecendo. O clima gostoso e a felicidade que eu vinha sentindo foram embora, e agora estou novamente sozinho. Vou à casa de Anna, e de lá vamos à cidade por um fim nisso tudo. De alguma forma, vou explicar à Anna que seremos apenas amigos.

São cerca de duas horas da tarde. Estamos chegando à cidade, Anna dirige agora e eu observo a paisagem que passou de ensolarada e bonita para gelada triste. O sol desapareceu à cerca de uma hora por trás das nuvens de chuva que branqueiam o céu. Tudo está cada vez mais gelado e mais sério. Não consigo me sentir feliz...

Chegamos à cidade. Devo dizer que estou impressionado: é uma cidade pequena sim, mas rica, rica mesmo. É cheia de mansões vitorianas, carros luxuosos, pessoas que andam na rua como se estivessem em um desfile de marcas famosas, com jóias exuberantes nos pescoços, pulsos e orelhas. Mas esta cidade é ao mesmo tempo estranha. Parece parada no tempo, as construções são lindas sim, e bem preservadas, porém são antigas e não encontrei nenhuma nova por onde passamos, o último desses carros deve ter sido comprado há trinta anos. Me sinto preso em um filme melancólico dos anos cinquenta e, ah, estou menos depressivo apesar de tudo.
Não fomos bem recebidos. Na verdade ainda não falamos com ninguém, estamos estacionados em frente ao mercado já que é o único local público que encontramos na rua principal. As pessoas que passam nos olham como se fôssemos fezes nojentas que algum cachorro deixou na rua, sem se importar em esconder suas expressões. Pode ser porque sejamos pobres, é a primeira coisa que Anna pensou, mas pode ser porque eu pareço um roqueiro revoltado que pode causar sérios problemas ao patrimônio público da cidade. Há três anos eu poderia, sim, ser um grande problema.  Mas agora eu quero apenas um cigarro para imortalizar minha imagem de problema.
Já estava ficando tarde e eu estava com dor no estômago de tanta fome, então fomos ao mercado para comprar qualquer coisa para comer e dar início às investigações. Por que não fomos antes? Porque um carro bateu no nosso e ficamos cerca de três horas resolvendo as coisas com o outro motorista. Não me admira ele  ter batido – estava olhando para a praça do outro lado quando começou a vir em nossa direção. Começamos a buzinar, mas é claro que não adiantou nada já que, além de velho e avoado, o motorista também era surdo.
Ninguém se machucou, e ele prometeu pagar o conserto se fôssemos à loja dele na rua secundária amanhã. Fiquei com pena daquele senhor, ele parecia realmente chateado por bater em nosso carro, e se sentia muito culpado, além de nos tratar como iguais. Não estragou muita coisa nos carros, apenas a lanterna dianteira esquerda do nosso, e uns amassadinhos no para-choque do dele, já que até o cachorro que desfilava ao lado do carro dele estava mais veloz quando bateu.  Por fim, joguei todas as folhas de papel que usamos para nos comunicar no lixeiro da calçada, retribuímos o olhar de nojo aos curiosos que faziam um pequeno círculo à nossa volta e fomos ao mercado.
A caixa era finalmente uma pessoa nova, com talvez uns anos a mais que nós. Foi simpática e nos indicou produtos interessantes para comprar e devorar na mesma hora. Havia muita coisa importada – França, Itália, Argentina, Inglaterra, Alemanha, Rússia... Isso me fez ter uma ideia dos preços do estabelecimento, e eu estava certo afinal. Quase caímos para trás ao pagarmos aquelas porcarias deliciosas que devoramos em um minuto.
Aproveitei e perguntei à Katia (o nome da caixa) se ela conhecia alguma história de suicídio daquela cidade. Ela fechou o sorrisão na hora e nos encarou desconfiada por alguns instantes. Nesse momento percebi que um homem nos observava de uma janelinha do andar de cima, mas não deu para ver sua expressão.  Katia por fim disse que não, então baixou muito o tom de voz para dizer que se fôssemos à biblioteca, poderíamos ter mais sucesso com a resposta.
Tudo bem, fomos à biblioteca, onde a Catarina - bibliotecária de 84 anos - nos disse que a mãe dela era amiga de um casal que se suicidou há muitos anos e nos ajudou a procurar por jornais da época, relatos ou qualquer coisa. Nada. Então nos disse onde ficava a casa estamos  a caminho de lá.
20:30. Depois de muita estrada de chão, árvores e morcegos gritando ao nosso redor, chegamos à casa. Em meu sonho/alucinação aquela casa parecia velha, pequena e simples. Contudo, é uma mansão enorme - e está abandonada. Típico filme de terror, aliás, minhas últimas semanas parecem ter saído do mais banal filme de terror. Estou refletindo sobre isso há algum tempo. Sabe, eu sou o mocinho. Ah, sou sim, nem vem. Nos filmes, o mocinho não morre, a não ser nos filmes em que há continuação, mas isso é no filme dois, e estamos no um. Então, eu vou sobreviver, mas alguém vai morrer. Será Anna? Será Amanda? Ou será  Mike? Ou Catarina? Serão todos? Serei eu... retardado?