Hoje de
manhã acordei pensando sobre esse diário. Não quero mais que minha mãe leia,
desculpe mãe. Vou escrever na primeira página: "Mãe, entregue esse caderno
à polícia caso eu tenha morrido, e não leia nada além dessa frase." Eu sei
que você está lendo isso aqui mãe. Eu sei que você está sorrindo agora. Eu sei
que você está gargalhando agora, mãe. Sei também que você daqui a pouco
lágrimas estarão escorrendo de seus olhos. Desculpe, mãe.
Anna e eu
saímos logo depois de comermos uns salgadinhos que sobraram do mercado,
passamos no posto meio abandonado na saída da cidade para usarmos o banheiro,
que estava mais sujo do que eu imaginei. Anna não conseguiu tomar banho lá,
ainda mais porque a água estava tão gelada que, depois do banho, me senti
castrado. Aí Anna lembrou que a senhora da biblioteca havia mencionado um hotel
em uma rua perto da praça, hotel que não tínhamos encontrado na noite anterior.
Passamos pela rua novamente e avistei uma pequena entrada entre duas lojas de
vestidos empoeirados. A entrada parecia um pequeno hall de alguma coisa que
poderia ser um hotel, porém não havia nenhuma placa. Decidimos entrar e
perguntar, e para a sorte da Anna (ela já tinha falado umas dez vezes que não
aguentaria mais um dia sem tomar banho, o que é uma coisa tão sem sentido e
banal pra mim, quer dizer, quem nunca ficou uns cinco dias sem tomar banho? Não
que eu fique, é claro...) era um hotel mesmo, e um senhor de uns sessenta anos
com cara de maracujá de gaveta nos levou até um quarto empoeirado no andar
superior, não sem antes nos fazer um inquérito digno de polícia àqueles que
seriam os primeiros, possivelmente, a alugar um quarto em anos. Eu não estava
de bom humor.
"Como
se chamam?" "David e Anna", respondi. "Preciso de pelo
menos um documento de cada um." Tudo bem, entregamos os documentos.
"De onde vocês vêem?" "Nova York." "Hum... a placa do
carro de vocês não diz Nova York." "É porque nós roubamos esse
carro." Anna arregalou os olhos para mim e gaguejou para o velho que eu
estava brincando. "E o que vocês querem fazer aqui?" "Somos
agentes de uma empresa multibilionária japonesa que encontrou indícios de uma
possível mina de urânio 238 sob esta cidade e estamos aqui para investigar."
"O quê? Minha de quê?" "David!" "Desculpe Anna,
esqueci que era segredo. Urânio 238, você sabe..." Disse ao velho.
"Isso aí é tipo pedra preciosa?" Ele perguntou, parecendo meio
fascinado. Agora até me sinto meio culpado, o velho não tinha culpa de não
saber sobre essas coisas afinal, "Sim sim, muito preciosa, vale mais que
diamante, se o senhor prometer guardar o mais absoluto segredo sobre nós e o
que estamos fazendo aqui, tenho certeza de que nossa empresa considerará
recompensá-lo." Finalizei com uma piscadela. O velho gaguejou um pouco até
que conseguiu dizer que nem que o demônio o interrogasse, ele diria qualquer
coisa sobre nós. Pensando bem, a promessa faz bastante sentido. Deixei Anna
responder ao resto das perguntas enquanto avaliava o quarto e alinhava os
conhecimentos que já sabia sobre o "caso" do espírito. Não consegui
concluir muita coisa, nem tinha mais certeza se o espírito queria mesmo minha
ajuda após o incidente da cruz na sala do Mike. "Ele vai querer um pouco
da coisa preciosa..." comentou Anna ao entrar no quarto. Eu dei uma risada
forçada. Se o cara segurasse a coisa preciosa, ele é se tornaria mais um
demônio, isso sim.
Enquanto
Anna toma banho, escrevo sentado em um sofá empoeirado do hall de entrada,
escolhi o mais afastado do velho no balcão. Preciso ligar pra Amanda, prometi a
ela que ligaria assim que conseguisse. Isso me lembra que preciso falar com a
Anna. Que merda, quando lembro que preciso falar com ela eu adio, e aí esqueço,
e aí não falo. Um cara raquítico de dois metros de altura usando um terno duas
vezes maior que ele com ombreiras colossais acabou de entrar no hall e foi
direto falar com o velho da recepção. Entrou com pressa e nem notou minha
presença, estou profundamente agradecido. Ele deve ter uns sessenta anos e não
tem feições nada agradáveis, mesmo assim, com essa roupa que parece ter sido
furtada do caixão do avô, ele é engraçado. Meio ridículo. Está tendo uma
conversa séria com o velho, enquanto me concentro para não rir e me manter meio
imobilizado. Nessas horas eu queria ter o poder de me afundar nas sombrar e me
tornar parte da parede para não ser notado e conseguir escutar o que eles estão
conversando, não sei porquê, mas sinto que tem a ver comigo e com Anna.
Pensando bem, tem situações onde esse poder seria muito mais útil... eu sou
realmente muito sensato.
10 minutos
depois:
O cara
começou a falar mais alto quando o velho da recepção respondeu o que quer se
seja que não o agradou, aí eu consegui entender a conversa. "Você precisa
entender que esse dia nós vamos ter que usar o salão e eu não dou a mínima se
já tem alguma coisa marcada ou não!" "Mas sr. Hulterf, o dia já está
reservado pelas mulheres há dois meses! Como é que eu vou falar para elas que
só porque o prefeito quis essa data eu..." "SÓ porque o prefeito
quis? Esse vai ser o dia do maior ritual de todos, a finalização, a conclusão,
depois de todos esses anos finalmente nós conseguiremos! Nós PRECISAMOS de um
espaço maior e eu quero que seja o salão do hotel! É melhor que você reserve a
data para nós Julian, ou vai ser pior para você." "Sr. Prefeito... eu
quero muito dar a data para o senhor, mas imagine como minha reputação vai
ficar com as mulheres..." disse o velho meio suplicante "Julian, eu
estou falando sério. Esse dia é nosso e fim de discussão." O velho soltou
o ar, derrotado. "Vou ver o que posso fazer."
Anna saiu do
quarto vestindo roupas executivas, quando viu minha cara disse que era para o
velho acreditar na história da empresa japonesa. Gostaria de saber como ela
arranjou essas roupas, afinal de contas não tinha como ela saber que eu
inventaria aquela história e trouxesse as roupas de casa. Talvez ela seja muito
prevenida em relação a certas coisas como roupas, eu deveria aprender alguma
coisa com ela. Nós saímos em uma missão de investigação e eu nem pensei em
disfarces. Que mancada. Provavelmente ela só fique tropeçando nos saltos o
tempo todo porque na verdade os saltos são revólveres, e um telefone.
Anna me
perguntou se eu alguma vez me sentisse um idiota. Respondi que só quando eu
respiro. Isso me levou à reflexão, e cheguei à conclusão de que também me sinto
um idiota quando minha ironia atinge um nível tão boss que as pessoas a quem
quero atingir não entendem minha ironia, e eu fico parecendo só um abobado
mesmo. Ela também me perguntou se eu possuo um alter ego (Anna está profunda
hoje). Eu tenho um alter ego? Não, prefiro pensar que sou completamente único e
maravilhoso assim sem alter egos. Mas o velho Bukowski não seria uma má opção.
Tony Stark também não, aliás, é bem provável que eu é que seja o alter ego do
Tony Stark. Merda, estou ficando sem cigarros...
Estamos
voltando até a casa dos pesadelos. Anna colocou "Enter Sandman" pra
tocar, dizendo que não há nada como os velhos clássicos. Não esperava que Anna
quisesse me agradar dessa forma, não deve ter sido fácil.
Primeiro ela deduziu que eu gosto
de hard rock pelo meu "estilo", aí ela foi pesquisar o que é hard
rock. Deve ter dado uma boa estudada na história, nos maiores nomes da música e
nas músicas mais marcantes. Então se deu ao trabalho (e aos ouvidos) de escutar
algumas músicas e baixá-las, para então colocar pra tocar como se ela fosse uma
grande fã do estilo e tentar me fazer pensar que temos muito mesmo em comum.
Pena que ela
não lembra de duas coisas: a primeira é que eu sei que ela não é fã de nenhum
tipo de rock, aliás, ela não é fã de praticamente nada relativo à musica, e a
segunda é o nome da banda que toca "Enter Sandman". Não fosse só
isso, eu também não sou lá um grande fã de rock. Pra falar a verdade, eu gosto
do Yanni com seu estilo próprio.
"Não
parece muito seu estilo..." comentei depois que Anna começou a batucar no
volante.
"E
desde quando você é do tipo que espera que as pessoas sejam aquilo que lhes é
pré-estabelecido segundo estilo ou o que quer que seja?" ela retrucou.
"E desde quando você tenta aparentar ser
o que não é só pra agradar os outros?"
"Não
estou tentando aparentar nada!"
"Então
me diz de quem é esse 'velho clássico'." Eu disse desafiando-a.
"Eu...
eu... já que está tão na cara assim que eu só quero TE agradar, talvez você
pudesse agir menos como um idiota orgulhoso e mais como um cavalheiro."
ela disse, e essa foi nossa primeira discussão.
"Desculpe
Anna, mas não sou um cavalheiro. Sou mesmo um idiota orgulhoso."
A questão agora é que preciso decidir
se quero continuar sendo um idiota orgulhoso ou se quero ser um cavalheiro.
Talvez eu não deva ser nenhum dos dois. Talvez eu deva ser simplesmente mais
humano, e mais eu, e Eu com "E" maiúsculo não sou um idiota.
"Você está certa Anna, me
desculpe... eu deveria ser mais gentil." foi o que eu disse após um tempo
de reflexão. Pedir desculpas faz com que eu me sinta bem, provavelmente porque
isso faz com que a pessoa ofendida também se sinta melhor. O ser humano tem uma
natureza caridosa admirável.
"Você é mais gentil do que pensa, ainda
vai descobrir isso."
Chegamos.
Não sei que horas são, mas meu relógio interno é bem eficiente e estou com
fome, ou seja, sei exatamente que horas são: hora de comer. Infelizmente isso
vai ter que esperar.
Mais tarde:
A casa em si já é bem assustadora,
agora imagina adicionar uns espíritos, sangue e objetos medonhos: preciso
começar a agradecer por cada dia que ainda permaneço vivo.
Eu entrei na frente seguido por
Anna, que aparentava estar mais assustada do que na noite anterior. Ela havia
trocado de roupa no banheiro do posto durante o caminho, e agora usava um
cardigã branco e uma saia rosa que a deixavam com uma aparência de garota de
anime. Perceber isso fez meu coração acelerar, eu tenho uma quedinha pelas
garotas de animes.
Mas depois de colocar os pés pra
dentro meu coração acelerou por outro motivo: medo. A sala/cozinha estava toda
empoeirada, mas fora isso tudo estava lá, como na visão, e mais. Havia uma
porta que eu não havia notado, e ao redor dela havia vários símbolos que eu não
conhecia, mas Anna já os havia visto. Ela fotografou a porta toda para que a
avó examinasse e então entramos.
Demos de cara com uma escada que
levava para baixo, para a total escuridão. Eu podia sentir desde o dia em que
chegamos à cidade que a força ruim se intensificara, e praticamente não senti
mais a presença “boa”, se é que havia uma. Ali naquela escada, a energia ruim
ficou ainda mais forte e eu a sentia em meu corpo todo, em cada pelo eriçado do
meu braço, até no ar que entrava e saía de meus pulmões.
Minha cabeça começou a latejar, e
comecei a me sentir fraco. Eu sentia que algo queria me impedir, contudo eu não
cederia ao espírito assim tão fácil. Eu é que estou vivo e não essa coisa, o
tempo dele já passou, eu é que tenho a força!!! E o He-Man também. Então
chacoalhei a cabeça, peguei uma lanterna da mochila que tínhamos trazido e
comecei a descer.
Anna comentou algo sobre sentir algo
ruim a respeito daquilo. Pedi a ela que ficasse, aquilo era algo que eu
precisava fazer ela não precisava se envolver daquela forma e correr o risco de
se machucar ou algo pior. Eu queria que ela ficasse na cozinha, ou melhor,
dentro do carro, mas ela continuou descendo as escadas atrás de mim, com os
olhos margeados de lágrimas devido ao medo, o que fazia com que eles ficassem
ainda maiores.
Ao primeiro olhar o porão parecia
uma dispensa quase vazia, com algumas estantes nas paredes. Porém, com um olhar
mais aprumado era possível distinguir através da poeira um enorme desenho de um
grande círculo vermelho no chão, e vários outros símbolos como pentagramas e
olhos e círculos dentro de círculos desenhados ao redor e dentro do círculo
maior.
Havia um cheiro de ferrugem no ar, e
percebi ao me agachar para observá-lo melhor que o desenho era feito de sangue.
Enquanto Anna fotografava tudo com uma discrição exagerada –como se estivesse
em um daqueles museus onde não se pode tirar fotos mas quisesse desafiar o sistema
e a sociedade como uma idealista solitária – eu analisava as estantes.
Descobri alguns documentos, não
queria passar muito tempo lá dentro então guardei na mochila o que achei
interessante para que pudesse ler depois. Quando achamos que havíamos terminado,
uma taça de ferro que estava em uma das estantes da parede oposta caiu no chão,
gerando um som agudo que durou um bom tempo. Eu e Anna congelamos onde
estávamos, minha dor de cabeça ameaçando abrir uma rachadura em meu crânio.
“Acho melhor sairmos.” Anna disse
depois de alguns segundos que pareceram horas.
“Vamos subir, já terminamos por
aqui.” Eu disse, com um tremor inesperado na voz.
Anna começou a subir as escadas em
um ritmo normal, mas terminou correndo e pulando os degraus de dois em dois.
Eu, não queria ficar lá sozinho, subi pulando os degraus de três em três. Assim
que eu passei pela porta, ela fechou-se estrondosamente, causando-me um breve
ataque cardíaco.
“A gente já tinha saído mesmo...”
Comentei assim que recuperei a capacidade de falar. “E bater a porta na cara
dos outros é falta de educação, seu... espírito mal criado.” Alguma coisa de
dentro do porão foi atirada contra a porta. Saí correndo da cozinha contraindo
as nádegas involuntariamente.
Havia um corredor ao lado da sala/cozinha
que levava a uma pequena sala onde havia uma escada ligando o andar de baixo
com o superior. Lá encontramos quatro quartos, dois de casal com algumas fotos
da mulher e do homem da minha visão, em um outro quarto havia livros, guarda
roupas e outras coisas de casa, e o último quarto era de uma criança, uma
menina.
Havia muitas bonecas medonhas de
porcelana com cara de “me possua”, com aqueles olhos de vidro praticamente
idênticos a olhos reais. As crianças brincavam com isso há cinquenta anos? Eu não
sei o que eu faria se acordasse no meio da noite e desse de cara com uma legião
de caras brancas de bonecas com olhos de vidro reais arregalados me encarando,
como se observassem cada etapa do meu sono. Urgh.
Não eram só as bonecas, tudo ali era
medonho. Havia uma cama toda de ferro que exalava o mesmo cheiro do porão, umas
estantes com brinquedos esquisitos e apenas uma foto, a mais medonha da casa.
Nela havia a mulher, o homem e uma menina todos com roupas escuras, parados no
meio de um campo e a casa medonha de plano de fundo. O assustador da foto era a
expressão da menina, uma expressão séria e fria, intensificada pelo olhar negro
passivo. Com toda a certeza do mundo, aquela menina não era “normal”.
Guardei a foto na mochila também e
após verificar o resto da casa tendo a certeza de que nada ficou para trás,
voltamos à cidade. Sair da casa foi o maior alívio para minha dor de cabeça,
mas não durou muito.
Deixamos o carro estacionado em uma
rua sem saída, atrás de um furgão escuro de entregas e em baixo de uma árvore
baixa que cobria tudo até as rodas com suas folhas caídas, então voltamos
caminhando ao hotel. No caminho, várias pessoas passaram por nós e não deixaram
de esconder seu espanto, admiração e desprezo, essencialmente por mim. Anna
decidiu me disfarçar, e isso inclui uma troca completa do visual, o que não me
agradou muito mas concordo que é algo necessário.
Descobrimos um restaurante perto da
praça (tudo aqui fica perto da praça), porém ele só abriria para o almoço e
ainda era metade da manhã. Tive que me contentar com uma cara emburrada e uma
barriga roncando. Fomos a uma loja de roupas para comprar meu disfarce que no
final não ficou tão ruim assim.
“Bom dia” disse Anna à vendedora. A
mulher alta de longos cabelos louros nos cumprimentou lentamente, à medida que
avaliava seus clientes. “A senhora vende roupas masculinas? Sabe, meu irmão
acabou de visitar a cidade grande e acabou voltando com essas roupas horríveis
porque perdeu as suas lá em uma lavanderia, ele não sabia como funcionava uma
na cidade grande, que bobo não! Hahaha...”
“Vocês são daqui?” Perguntou a
mulher franzindo o cenho.
“Sim, não daqui da cidade mas somos
daqui de perto, de um sítio não muito longe...” Mentiu Anna, meio mal mas
eficientemente.
“Que pena ter perdido suas roupas
meu jovem, ainda bem que tenho roupas masculinas sim!” A mulher foi para trás
de muitas estantes amarrotadas de caixas e roupas avulsas e voltou com um
conjunto horrível de roupas azul marinho cheirando a mofo. Assim que enfiaram
aquela camisa em mim tive um ataque alérgico e passei o resto da manhã
espirrando.
“Acho que é muito pequeno, vou pegar
outro.” Disse a vendedora.
“Muito obriga...a...aatchim!”
“Talvez algo mais... novo...” disse
Anna à mulher.
Ela voltou com uma camisa branca
simples e uma calça bege relativamente vestíveis, sem cheiro de mofo e limpas.
Tirei minha camiseta preta, minha fiel companheira, e deixei de lado para
vestir a camisa branca.
“Você trabalha no sítio mesmo?”
perguntou a mulher a mim.
“Sim, trabalho sim...”
“Deve ser um trabalho pesado, faz
tempo que não vejo alguém com um corpo desses por aqui...” Me achou um gostoso
não é, querida? Eu sei.
“Sei... obrigado...” eu disse
disfarçando o sorriso enquanto entrava no provador para colocar as calças.
“Não há muitos jovens por aqui, você
sabe, e os poucos que vejo não trabalham muito o físico, se dedicam mais ao
intelecto.” Ela comentou por trás das cortinas.
“Você ficaria surpresa com meu
intelecto, é mais trabalhado que meu físico.”
“Oh, é mesmo? Não vejo como um
qualquer trabalhador rural possa ser intelectual.”
“Veja, fui agraciado com uma
inteligência naturalmente superior à maioria. É por isso que sei que trabalhar
no sítio é um dos melhores ambientes para desenvolver a mente e buscar um
equilíbrio com o corpo. Também sobra tempo para fazer dinheiro, algo muito
simples para mim. Ainda bem que meu QI não é baixo como o da maioria, se fosse
eu provavelmente seria um... vendedor em uma loja de roupas.” :D
Consegui escutar o zumbido de uma
mosca do outro lado das cortinas. Foi assim até eu sair do provador, e me olhar
no espelho. Aquela pessoa parecia comigo, mas não era eu. Não me lembrava da
última vez que vesti roupas claras como aquelas, até meus olhos sofriam com a
claridade.
“Uau David!” exclamou Anna chegando
mais perto para admirar a pessoa ali parada. “Você parece até uma pessoa
normal! Só falta cortar esse cabelo e...”
“Sim, devo admitir que está bem
vestido. Mas essa roupa não é barata.” Disse a mulher me olhando do alto de seu
nariz empinado, que na verdade batia no meu queixo.
“Já disse, senhora, dinheiro não é o
problema.”
“Pois bem então.” Ela disse se
dirigindo ao caixa, e fui atrás para pagar. Pensei que ela cobraria o preço de
uma mansão naquela cidade pelas roupas, porém a conta foi bem barata. Ela devia
estar delirando quando disse que aquilo não era barato.
“Você tinha que ver a cara que ela
fez quando você disse aquele negócio sobre ser vendedor de uma loja de roupas.
Achei que os olhos fossem saltar pra fora das órbitas” Anna comentou rindo
depois de sairmos da loja e nos dirigirmos ao barbeiro.
“Eu quase acreditei que ela fosse
gente boa até ouvir aqueles comentários. Você sabe que não perdoo gente
mesquinha. Ainda bem que ela não pediu para eu provar minha inteligência...”
“Tenho certeza que você pensaria em
algo...” disse Anna, anda rindo.
Quando chegamos ao barbeiro, Anna
decidiu que esperaria do lado de fora para fazer uma investigação solo enquanto
eu me livraria das madeixas. Por mim tudo bem, Anna sabe o que faz, melhor do
que eu.
“O senhor está atrasado.” Disse um
jovem um pouco acima do peso vestindo um avental verde escuro, parado ao lado
de uma cadeira de barbeiro.
“Eu acho que o senhor está
enganado... quer dizer, eu não marquei um horário...” eu disse, hesitante
enquanto observava o rapaz estranho. Ele possuía um bigode que ia de orelha a
orelha, e calçava sapatos vermelhos enfeitados com muito brilho, além de uma
camisa sem mangas dourada. Também tinha os cabelos até a altura das orelhas
meticulosamente arrumados com muito gel que os grudava à cabeça formando uma
espécie de capacete.
“Eu sei, quero dizer que seu cabelo
deveria ter sido cortado há um bom tempo. Veja só essas pontas secas! Quanta
falta de cuidado... Há quanto tempo que esse cabelo não é lavado? Olha só isso,
vou ter trabalho pelo resto da manhã, com sorte conseguirei deixa-lo
apresentável.”
“É, então... desculpe...” Eu não
sabia o que dizer.
Algumas horas depois, praticamente
na hora do almoço, saí de lá com um dedo de comprimento de cabelo. Me sentia
como se tivesse acabado de sair do exército, com o cabelo mais militar
possível. Estou tão diferente que Anna não me reconheceu à primeira vista,
apenas depois de eu acenar e perguntar o que ela achou do cabelo.
“Você tem orelhas...” ela disse num
tom maravilhado, fingido é claro. Ficou me observando por um certo tempo, então emendou: "David, você é muito bonito."
“Muito engraçada. Vamos
comer.”
Mal eu havia dito aquilo, um carro
muito velho virou a esquina fazendo alguns malabarismos na pista. Primeiro
pensei que o motorista estivesse bêbado, até ver quem estava dirigindo. Era o
velho surdo que havia batido em nosso carro no dia anterior, pelo visto ele
tinha mais de um carro e se recuperara do acidente bem rápido.
Notei, com o canto do olho, dois
garotos de no máximo dez anos caminhando na calçada ao lado da rua. Eles vinham
na mesma direção do carro, por isso não viram quando o velho se aproximava, que
também não via para onde estava indo porque se concentrava em alguma coisa
dentro do carro que o mantinha de cabeça baixa.
Eu pude prever o que aconteceria.
Corri com toda a velocidade em direção aos meninos, o que atraiu a atenção das
demais pessoas na rua, enquanto carro do velho subia na calçada. Ele percebeu
que algo devia estar errado, mas não fora rápido o suficiente para desviar do
lugar onde o menino mais louro que caminhava mais perto da pista estava.
Por sorte, eu o havia tirado daquele
lugar segundos antes, e o velho só passou por cima de uns cadernos que caíram
das mãos do menino enquanto ele voava para o lado. Meu coração estava a ponto
de saltar pela boca.
“Esse velho NÃO DEVIA ter
autorização para dirigir, nem um metro sequer!” foi a única coisa que consegui
dizer depois enquanto o menino com os olhos arregalados tentava entender o que
havia acontecido, e eu tentava engolir o coração. Seu amigo de cabelos mais
escuros estava paralisado em um berro desde o momento em que o carro passara ao
seu lado.
“JASON! JASON!” Gritou um homem
elegante que veio correndo de algum lugar ali próximo. Agarrou o menino
enquanto avaliava a situação do mesmo, e verificava se estava tudo bem, então o
abraçou e abraçou também o outro menino que agora parara de berrar, porém
continuava paralisado. Então se dirigiu a mim:
“Muito obrigado, o senhor salvou meu
filho, estou profundamente agradecido.” Disse ele, e eu tive a sensação de já
ter visto seu perfil em algum lugar. “Possuo uma dívida com o senhor, se há
alguma coisa que o senhor queira de mim, não hesitarei em dar, dinheiro, o que
o senhor...”
“Não, está tudo bem, não quero nada,
fico feliz que o menino esteja bem, me sinto lisonjeado por poder salvar a vida
de alguém... só saber que ajudei alguém já é o maior pagamento que poderia
querer...” foi o que consegui dizer no momento.
O homem assentiu. “O velho Junkes
não pode mais andar por aí assim, essa foi a última volta dele.” Comentou o
homem, enquanto observava o carro que o velho dirigia que estava agora
estacionado sobre o lixeiro da calçada. Junkes ainda não havia saído do carro,
provavelmente ainda estava se recuperando do susto também.
“Realmente, ele é um perigo...”
comentei.
“Sou Werner Kolohm, dono do mercado
ali à frente e sócio da mineradora.” Disse o homem estendendo a mão para mim.
Incrível o que uma mudança de visual pode fazer, duvido que o homem estenderia a
mão para mim daquela maneira há algumas horas atrás.
“Frederick... Frederick Ownson.” Foi
aí que reconheci o homem, fora ele que espiava a mim e a Anna enquanto
estávamos no mercado. “O senhor possui um belo mercado...”
“Obrigado, é da família há anos.
Uh... o senhor parece bem jovem, acho que não o vi ainda aqui na cidade, é novo
por aqui?” Ele perguntou de certa forma até meio gentil. Reparei que várias
pessoas haviam se aglomerado ao nosso redor, curiosas.
“Sim, estou só de passagem, coisas
do trabalho... trabalho para o governo, vim fazer uma avaliação de algumas
terras aqui perto e acabei decidindo me hospedar por aqui, a cidade parece...
simpática...” menti.
“Isso é interessante... Frederick,
essa noite haverá um jantar em minha casa, na verdade é uma pequena festa para
amigos, talvez o senhor queira participar.” Convite inesperado.
“Ah, eu não sei não...”
“Por favor, é minha maneira de
agradecer pelo que fez hoje, e será um prazer ter um convidado como o senhor em
minha casa.” Disse ele calmamente com um leve sorriso. Pensando bem, seria uma
boa maneira de descobrir mais a respeito da família que morava na cada
assombrada.
“Bom... tudo bem, eu apareço por lá
então...” ele me entregou um cartão com um endereço e agradeceu novamente. “Eu
é que agradeço pelo convite, e vocês garotos, se cuidem.” Eu disse aos meninos.
Eles foram então até o carro do velho Junkes, e eu comecei a procurar Anna na
multidão. Ela apareceu após algum tempo, disse que havia se escondido porque
também havia reconhecido o homem e temeu que ele a reconhecesse, mesmo que,
então notei, ela também estivesse usando um vestido como as mulheres aqui
costumam usar.
Contei a ela sobre a festa, e
decidimos procurar por roupas adequadas para vestir à noite. Ambos concordaram
em procurar por outra loja. Meu estômago já estava suplicante por comida, e
decidimos parar no restaurante para almoçar, e foi tão bom... Dedicamos a tarde
para investigar o que encontramos na casa assombrada, e descobrimos que o nome
da mulher da casa é Dramarie e seu marido se chama Leubert. Não encontrei nada
a respeito da menina, o que é um pouco frustrante. Vou tentar alinhar o que sei
sobre esse caso para que faça algum sentido lógico.
- Tem espíritos me assombrando.
- Um desses espíritos é uma mulher que se chama Dramarie.
- O outro espírito é seu marido, Leubert.
- Ambos morreram quando caíram de um penhasco.
- Dramarie se jogou, Leubert caiu acidentalmente.
- Na casa deles há indícios de adoração a algum demônio (a avó de Anna respondeu o e-mail que havíamos mandado com as fotos, disse que tudo indica que a casa era o local utilizado por uma seita para a adoração a um demônio chamado Belphegor.)
- Se as pessoas que vimos na noite anterior fazem parte da mesma seita, muita gente dessa cidade está envolvida com o que estamos investigando.
- É provável que Dramarie e Leubert tinham uma filha.
- Meu nome agora é Frederick por agora.
“David, escuta só: ‘Belphegor ou
Belfegor ("o senhor do fogo"), divindade moabita venerada no monte
Fegor. Demônio da preguiça, das descobertas, do apodrecimento, dos inventos e
do ciclo. Era cultuado na antiga Palestina na forma de uma figura alta e
barbuda com a boca aberta, tendo por língua um gigantesco falo. O sabá dos
feiticeiros da Idade Média não foram senão uma repetição, herança das festas de
Belfegor. Belphegor é um dos sete princípes que governam o Inferno, sendo a
personificação do primeiro pecado, a preguiça. Sua aparência modifica-se de
acordo com a citação, desde um ser bestial (semelhante a um lobo) até um velho
alto, barbudo, possuindo uma língua com forma de falo, dentes caninos grandes e
uma cauda de dragão.’ Acho que é o nosso cara.” Disse Anna com o celular nas mãos.
“Wikipedia?”
“Arrã.”
“Não parece muito animador...”
“Não mesmo... ‘Quando Lúcifer inicia
sua rebelião contra o Criador, todos as hordas de anjos aliados ao Senhor pegam
em armas para enfrentar as forças rebeldes, porém um dos anjos mais poderosos
do paraíso se recusa à participar daquela batalha, seu nome era Bastiel.
Bastiel, abandona o sétimo céu e segue as "terras posteriores" onde o
combate ainda não tinha atingido. Porém quando a guerra acaba, e as forças
celestiais encontram Bastiel, ele é considerado desertor e enviado ao Inferno.
Após ser enviado ao Inferno, Bastiel é hostilizados pelas hostes infernais,
porém Lúcifer, o Imperador do Inferno, acaba por firmar uma aliança com
Bastiel, nomeando Belphegor. Molloch, príncipe que reinava sobre o primeiro
círculo do inferno (Desidia Circum Primus) se recusa a aceitar a presença de
Belphegor e resolve eliminá-lo. Porém Belphegor, era um Arcanjo, e seus super
poderes relativamente superiores aos de Molloch, um simplório querubim. Após humilhado,
Molloch é expulso de Desidia Circum, e Belphegor condecorado o Príncipe da
Preguiça e Rei do Primeiro Círculo. Belphegor na hierarquia do inferno, esta
abaixo apenas de Lúcifer.’ Bom, podia ser pior... podia ser o próprio
Lúcifer...” disse Anna com um sorriso forçado.
“Você acha que esse demônio é algum
desses espíritos que está me assombrando?”
“Acho que não... não,
definitivamente não. Um demônio assim não iria assombrar uma pessoa dessa
forma, acho que essa seita apenas venera o cara.” Disse Anna despreocupadamente,
largando o celular sobre a cama enquanto procurava pela carteira. “Vou
encontrar roupas para usarmos essa noite, depois eu volto aqui.
“Acho melhor eu ir com você, não sei
até que ponto é seguro...”
“Ah, por favor, relaxa...” disse ela
já no corredor com a carteira em mãos, fechando a porta atrás de si.
Relaxa... como se fosse fácil assim.
∴
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