Eu não morri ontem, nem dormi pelo resto da madrugada. Não acordei nessa madrugada com pés em frente a minha porta, mas em todo caso, avisei a segurança da universidade e eles falaram que iriam ficar de olho - até parece.
Agora são cinco da tarde e estou no ônibus, indo conhecer uma possível futura casa, minha casa. Ontem arranjei um emprego, nada de mais, mas vai ser bom para ajudar a pagar o aluguel. Agora sou vendedor de flores. Pois é, segunda eu começo a rotina dos trabalhadores assalariados comuns na floricultura perto da universidade, apenas durante a manhã pois tenho aula durante a tarde - inclusive hoje, mas estou faltando (mãe, se eu morrer, me perdoe por isto). O que achei realmente bom sobre o novo emprego foi o fato de minha única colega de trabalho ser incrivelmente simpática e até meio bonita. Ela tem dezenove anos também e tem um namorado babaca (ele ligou para ela no período em que eu estava lá, ficou falando essencialmente sobre sexo, sei disso porque ele parece não saber falar ao telefone, apenas gritar, e a cara dela de tédio e repulsa fora evidente) o que é ótimo para mim. Opa, estou chegando.
Mais tarde:
Caramba, aquela casa é um lixo. Não é a toa que vou conseguir pagar todo o aluguel com meu micro-salário e ainda vai sobrar quase a metade que vou colocar em uma poupança. Ainda assim, vou me mudar depois de amanhã, tudo é melhor do que ficar aqui, neste quarto amaldiçoado no qual me encontro. Estive pensando sobre ele - o quarto - e amanhã vou fazer uma pesquisa. Acho que alguém morreu aqui, só pode ser isso, porque tem a porcaria de um espírito de botas que pára em frente à porta às três da manhã. Também vou chamar o padre para benzer esse lugar, eu não queria fazer isso pois o resto dos alunos vai me achar ainda mais alucinado do que já acham, mas é o melhor. Ah, sim, sou o calouro "esquisito". Tenho cabelos pretos até os ombros, as roupas que uso são em sua maioria pretas e não falo com ninguém. É claro que para tudo se em uma explicação: não falo com ninguém porque a maioria dos "outros" são meio babacas; no segundo dia de aula, oito veteranos do segundo ano arrastaram nós, os onze calouros do primeiro ano até o banheiro, e enfiaram a cabeça de cada um na privada - a não ser a minha. Ao que parece, ficaram um pouco assustados com meu visual, e com minha atitude. Enquanto os outros eram humilhados na privada, eu permaneci sentado na maior calma, fumando meu cigarro, só observando o sofrimento alheio. Estava com cólera pela humilhação que passaria, mas fingi bem. Meus colegas não ficaram muito felizes quando não sofri a mesma humilhação, mas nenhum ousou abrir a boca para reclamar. Então todos começaram a rir e um veterano chamado George agarrou um calouro raquítico com cara de assustado que parecia a ponto de vomitar, e começou a despi-lo na maior selvageria. Temi o que estava por vir, sentei-me ereto e joguei meu cigarro fora, pronto para intervir se o veterano tocasse o zíper de sua própria calça. Ele arrastou o calouro debaixo de uma ducha fria, abriu-a e deixou o cara ali congelando enquanto gargalhava e se certificava de que tudo havia sido registrado pelas câmeras do outro veterano. Por fim, um outro veterano chamado Boile arrastou outros dois calouros para debaixo da ducha, e mandou que os três garotos assustados começassem a se beijar. "Se não fizerem isso agora, nós oito vamos foder cada um de vocês". Epa, não se eu puder evitar seu gordo imbecil. Mas não me movi, pensei que os calouros fossem se beijar e pronto; não estava muito afim de intervir no trote, afinal uns beijos não matam ninguém, e dariam uma boa história para rir com os amigos há alguns anos. Um dos calouros, pensando se tratar de uma brincadeira, disse que não e tentou sair debaixo do chuveiro. Os veteranos foram para cima dele, e uma confusão se instaurou quando os veteranos começaram a abrir seus zíperes e os calouros tentaram fugir assustados. O problema é que a porta do banheiro havia sido trancada, e àquela hora da noite ninguém apareceria para socorrê-los. Me pus de pé, enquanto avaliava a situação. Os dez calouros haviam sido despidos e enfileirados na parede do banheiro, e os veteranos estavam prestes a realmente fazer o que haviam prometido. "Já chega dessa merda" foi o que eu disse, meio assustado, meio tentando parecer machão. Meu coração batia a mil por hora, mas me mantive sereno, como um cowboy forasteiro que chega para salvar a donzela - nesse caso, dez nerds espinhentos com os rostos tão brancos de medo quanto suas bundas. Os veteranos me encararam por certo tempo, certamente avaliando suas chances. Eles acabariam comigo se tentassem alguma coisa. "E você vai fazer o quê?" perguntou por fim um cara chamado Angus, baixinho de cabelo loiro espetado e cara achatada. O que eu faria? Sairia correndo se a porta estivesse aberta, mas como não estava, acho que berraria em vão enquanto sofreria o mesmo que meus colegas. Mas não foi isso que disse a ele. Calmamente, peguei meu isqueiro, acendi um cigarro, dei uma boa tragada e apontei o cigarro para o Angus com a cara mais do mal que consegui fazer. "Depois de rasgar seu cú e deixar ele tão largo que todos os calouros vão poder meter em você ao mesmo tempo, vou pegar esse cigarro e afundar no seu pau. Vai doer tanto que daqui a trinta anos você ainda não vai conseguir enfiá-lo em outro cú, seu arrombado do caralho". De onde veio isso? Fazia um tempo que havia jurado para mim mesmo que não iria mais atormentar outros com aquelas palavras, mas dessa vez isso era necessário. Eu disse aquilo realmente devagar. Então traguei mais uma vez, e chacoalhei o cigarro na direção do veterano. Ele não parecia acreditar, mas arregalou tanto os olhos que estes quase saltaram das órbitas. Também não parecia disposto a averiguar o que eu havia dito. Permaneceu em silêncio, enquanto os calouros olhavam para mim como uma espécie de grande salvador. O Boile disse então que estavam só brincando, e nos parabenizou pela conquista de entrar na faculdade - momento bem propício. Ele e os outros veteranos saíram do banheiro e todos os calouros se vestiram e apertaram minha mão, agradecidos. Suas expressões ainda eram de medo, mas acho que eles estavam com medo de mim. Quando finalmente todos saíram, verifiquei se estava mesmo sozinho no banheiro e então corri para uma das privadas e pus toda a janta para fora. Foi assim que minha comunicação com os veteranos acabou. Quanto aos outros calouros, não tenho nenhum motivo para ignorá-los, mas a maioria arregala os olhos e passa longe quando me vê. Apenas o garoto que foi arrastado por primeiro para a ducha, o Michael, fala comigo às vezes. Mas não temos muito assunto - ele passa a maioria do tempo em que estamos juntos me agradecendo e falando como sou o bad boy da universidade e como ele inveja o fato da maioria das garotas quererem passar as noites comigo. Parece que até nossa professora de estatística (uma mulher de meia idade, cabelos ruivos e bunda volumosa chamada Ruth - a professora, não a bunda) ficou sabendo de minha reputação e comenta com algumas amigas estudantes como "me deseja". Ok, só que não. Eu não fico sabendo de nada disso pessoalmente, já que nenhuma garota vem falar comigo e nem mesmo a Ruth, embora eu a tenha pego me observando de canto de olho várias vezes durante as aulas. Ás vezes parece que ela se remexe na cadeira enquanto me observa, mas deve ser só minha impressão. Reparei que dois ou três calouros apareceram nas aulas dos dias seguintes ao episódio do banheiro vestindo-se à moda David. Camiseta preta meio rasgada e desbotada (as minhas porque são velhas, as deles porque alguém derramou acidentalmente sobre elas água sanitária), calça jeans surrada, all-star detonado ou botina suja de lama. Sou um cara esquisito, e agora vou trabalhar em uma floricultura e receber visitas do padre. Adoro minha reputação. Acho patético o esforço que as pessoas fazem para se encaixarem nessa sociedade corrompida, mas não dá pra negar que ás vezes é ruim estar tão sozinho, pelo menos em casa eu tinha amigos que pensavam da mesma forma que eu, e aqui ainda não encontrei ninguém - a não ser a garota da floricultura que não me olhou como se eu fosse um psicopata. Lembrei agora que preciso cortar meus cabelos. Não que eu me preocupe com a beleza, mas eles estão me atrapalhando um pouco em momentos um pouco delicados, como na hora de limpar a bunda. O que é mais fácil, cortar ou amarrar? Hm, cortar.
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